terça-feira, 24 de junho de 2014

Um Conto Sobre Cães

João estava destruído.

Era homem feito e acabado, pensava ele.

Seu pai era alcoólatra. As surras eram constantes e ficaram mais intensas à medida que crescia.

Sua mãe era maníaca depressiva e o culpava por tudo. Às vezes ela chorava. Outras vezes agredida física e verbalmente tudo aquilo que estivesse a sua frente... E ele sempre estava lá.

Havia um casal de tios e uma avó. Moravam sob o mesmo teto, mas não no mesmo mundo. Os tios moravam numa gaiola onde só existia a parte de dentro. A avó morava numa poltrona tão funda que de cima só se via seu corpo sentado e magro... Sua alma estava perdida nos embaraços úmidos do inferno que era aquele assento velho.

Logo aquele garoto estava perdido. Aprendeu desde cedo a olhar sempre para a ponta de seus pés. Era tudo o que importava, o que era verdadeiro. Uma topada. Uma dor. Uma culpa. Tudo era daquele jeito mesmo. O Universo planejou assim... E era tudo injusto.

Cada dedo de seus pés tinha nome próprio de acordo com a dor que causavam. Eram os melhores amigos de João e seu coletivo fora batizado de: Fardo... Num ponto da vida daquele garoto que já não importava mais, porque a estrada às suas costas era igual, em distância, como a que se debatia a sua frente. Não existia passado ou presente e a pilha de lixo se empilhava em seu caminho, vindo de todas as direções. Umas vezes choviam, outras ventavam ou brotavam da terra. Sempre estavam por lá... E sempre estariam... Era o que seus melhores amigos diziam e sempre o lembravam... A dor era sua companheira e outra amiga bem íntima.

Um dia ele resolveu olhar para os lados. Distante ele via outros homens. Todos de cabeça baixa. Olhando para os seus próprios pés. Caminhando em seu próprio lixo. Era a vida assim sofrida, mas bonita, pensava ele. Era tudo perfeito.

O tempo passou. Ele cresceu. Estava exausto. Tinha tido filhos? Mulher? Perguntava-se nos poucos momentos em que a bebida o abandonava. Isso já fazia parte de sua vida. A tristeza era outra amiga que mantinha sua cabeça sempre fiel à ponta de seus pés. Já não via outras pessoas, porque os lados para os quais olhava já estavam soterrados com montanhas de sujeira do tempo. Ele sorria para isso. Era tudo perfeito.

Exausto, então... Ele sentou e entregou-se ao sono.

Não sabe quanto tempo passou até sentir aquelas lambidas em seus olhos fechados. Uma língua pequenina e úmida tocava seu rosto freneticamente. João estava cansado demais para esboçar qualquer reação.

Era bom. Ele começou a sorrir sem perceber. O toque era carinhoso e humilde. Tinha um sentimento que ele não conhecia, mas descobriu que fazia parte dele. Não era algo da vida, era muito diferente. Aos poucos, então, a curiosidade o fez ver.

O pequenino era franzino demais. Suas patas finas e cautelosamente saltitantes eram só pele e osso combinando com as costelas que enfeitavam seu dorso. Os olhos, porém, transbordavam e espalhavam uma luz tão cheia de ternura que fez João se perguntar ‘como podiam ter ignorado todas aquelas feridas?’. Cicatrizes e cicatrizes de todas as formas também eram parte do corpo daquele cachorrinho, mas ele não se importava... Não eram suas amigas... Não era sua vida. O homem esboçou abaixar sua cabeça para refletir e contar as cicatrizes de seus dedos, todavia o pequenino não permitiu o interrompendo com mais lambidas. João sorriu.

O homem perdeu-se em tempo e espaço. Agora só existia um largo sorriso sustentado por gargalhadas saltitantes. Não existia mais céu, nem chão, nem direita, nem esquerda e nem lixo de cima, de baixo, de um lado ou de outro. Só barulho de patinhas, latidos e orelhas que abanavam o único vento que dava sentido a vida de João.

Seus braços jogavam-se para cima e para baixo no ritmo dos pulos daquele cachorrinho magrinho e cheio de vida. Seus olhos se abriram em meio à brincadeira, então ele percebeu... Estava olhando para cima! O que estava sentindo?

O pequeno cachorrinho ofegante pulou pra seu colo. Eles se abraçaram e João o agarrou com força e ternura. Os olhos se fecharam. O sorriso se abriu. O homem puxou o ar com vontade para dentro de seus pulmões. Seu nariz estava encostado em seu amiguinho... Foi o melhor cheiro que sentiu em sua vida. O sangue correu por suas veias e o arrepiou quando o fez sentir as batidas de seu próprio coração sincronizadas com as de seu novo amigo. Era Amor.

O homem abriu os olhos. Lembrou-se de seu Fardo. Sentiu uma pontada esquisita no estômago... Estaria traindo a vida que tanto amava? Ele era feliz... Não era? Seus olhos se abriram espantados e correram em volta... Mas era tudo diferente. João se viu num imenso Mar de Corcundas! ‘O que é isso?’ perguntou pra o pequenino que, sem pronunciar palavra alguma o fez ver que eram pessoas olhando para baixo. Caminhando em direções diferentes. Silenciosas e envergadas sobre suas próprias visões de mundo. João teve medo. Sentiu um frio dentro de si. Colocou seu pequenino no chão. E voltou sua cabeça para baixo sem esperança alguma... Mas ele estava lá! Pela primeira vez em toda sua existência o homem viu que não estava sozinho e esquecido com seus próprios pés, porque no meio do caminho havia uma carinha cheia de línguas, com orelhas baixas, que o fitava com uma alegria verdadeira e que não se importava com os males em seu caminho.

O homem não havia se esquecido das coisas ruins e de tudo o que havia vivido. Mas começou a entender sobre suas escolhas. Ele mesmo havia decidido viver culpando a si mesmo e aos outros por seus fardos e sofrimentos... Assim como a família antes dele fez.

Entendeu a origem de todo o lixo que ele via quando olhava em todas as direções. Eram gotas de chuva que vinham de cima. Eram gramas e terra que estavam em baixo. Era o vento do Norte, do Sul, do Leste e o Oeste... Era o barulho da Vida. Murmúrios das pessoas. Canto dos pássaros... Tudo o que irritava e que ele tanto culpava por suas próprias desgraças, era simplesmente Vida!

Então, ele entendeu. Espreguiçou-se, desfez a corcunda, estalou suas costas e inalou um pouco de mundo e de constante verdade. Deixou que seus olhos se abrissem com segurança junto ao seu sorriso. Pela primeira vez permitiu-se ser homem sapiente e alegrou-se muito com isso. Decidido a seguir em frente, João viu que seu caminho sempre fora uma escada, mas dessa vez... O que vinha a sua frente era incerto e o que ficou para trás não importava. Pegou aquele pequeno Amor em seu colo, deu outra fungada no melhor cheiro que sentiu em toda sua vida, e começou a galgar seus próprios degraus. Já não importava pra onde ia, mas cada passo que subia.


Texto: Bruno DelTony

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